"O bêbado e a equilibrista"

Publicado em 15/07/08

Moravam em prédios vizinhos e eram inevitáveis os encontros na padaria, na quitanda, no mercadinho do bairro. Às vezes, caminhavam lado a lado sem se perceberem, como é normal neste mundo tão anormal! 


Chegou a contemplá-la colocando na rua, sem saber que dia e hora o lixeiro passaria, o lixo diário, até seu lixo era simplesmente um luxo! Vendo-a, um dia, dirigir-se ao ponto de ônibus, correu à garagem, retirou seu veículo e ofereceu a ela uma carona, eufemismo de um passeio romântico, a mulher quis resistir, no entanto, resolveu aceitar, afinal poderia ser o fim de uma curiosidade de quatro anos, lembrava-se dele da última copa , perdida para a França de Zidane, ele tinha mais cabelos, menos barriga e um carro mais popular, ela terminara um relacionamento com um homem deveras mais velho, que já não acompanhava suas idas ao parque, à academia e muito menos à banca, o parceiro trocara-a pela televisão a cabo e suas programações repetitivas, às quais muitos querem dar cabo! 

Desde aquela época, quisera conhecer o misterioso homem do olhar enigmático, que sempre a fitara e nunca se apresentara, por isso, aceitou a carona, adentrou o veículo e foram ao destino de cada um , coisa do destino! 

Descobriu que ele era um arquiteto, fã incondicional de Oscar Niemeyer, que amava a natureza e achava que havia lugar para o verde e também para os arranha-céus, tudo era questão de respeito e ordem, não necessariamente nessa ordem. 

Enfim, depois de criticarem o governo, a moeda corrente no país, verterem lágrimas com as balas da infância do baleiro do boteco da esquina e das balas perdidas de hoje, combinaram um jantar numa tradicional tratoria da cidade, vinho, massa, cantina, olhares, risos, interjeições italianas em alto e bom som, poderia haver situações mais românticas? 

Chegou o grande dia, o encontro marcado, começar algo, sim porque sempre há um meio de se encontrar um fim para um começo! 

Introduziu-se o ser masculino falando de si, da vida, de amor e de sua vida ébria, fora um boêmio incorrigível e a cada prazer etílico de Baco vislumbrara obras arquitetônicas jamais vistas, palácios, pontes, casas, casebres, mansões, prédios, porém nunca conseguira ver o rosto de seus moradores, dos compradores de seus imóveis, principalmente depois que seus móveis braços e pernas tornavam-se imóveis com o vinho! 

Ela preferiu falar das flores, das plantas com quem conversava sempre e que Cartola não tinha razão, pois as rosas falam, não simplesmente exalam, falam e calam como qualquer outro! A solidão é espinho que cala fundo, por isso, que talvez, no fundo tudo se cala, aprender a viver só, não traduz só viver. Respeitou seu gosto pelo vinho e disse que a bebida era um elixir dos sonhos, aproveitou e encheu as taças, deram-se um brinde e beijaram-se com os olhos e sonharam-se com as bocas! 

Ao trazer a conta, o garçom disse-lhes algo de que não se deram conta, não poderiam dirigir, pois consumiram o pior líquido da terra, o álcool, e a lei seca, não aquela da vida de Fabiano e sinha Vitória em Vidas Secas, não a lei que persegue as modelos impondo-lhes a podridão da padrão de beleza, mas sim a lei seca do governo, que privou homens e mulheres de dirigir suas vidas, pois a bebida agora é proibida, sim "Pai, afasta de mim esse cálice!", sim agora o cálice é cálice, mas como diria Chico Buarque: "Como beber dessa bebida amarga?". 

Saíram da tratoria e resolveram ir embora a pé, olhando as estrelas, ela cultivando jardins, ele projetando imóveis, enquanto suas pernas ainda estavam móveis, ela subiu num muro e equilibrou-se, desceu, resolveu atravessar a avenida num zigue-zague entre tartarugas amarelas, abruptamente veio um veículo movido a álcool dos pneus à cabeça do motorista e atropelou a solidária solitária, o arquiteto correu ao seu encontro, mas o chafariz de sua fonte amante jorrava sangue, deixou a mulher na rua, no meio da rua e entrou num bar e pediu uma garrafa de vinho, daqueles de que as uvas teriam vergonha e Baco recusar-se-ia a provar, bebeu se lambuzando e prevendo dias de seca, de lei seca, de vida seca, sem ama-seca, tudo por culpa do governo e de sua “sede zero”!
 

SINUHE DANIEL PRETO

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